sexta-feira, 30 de outubro de 2009

Da próxima vez, vá de táxi.


Dessa vez não teve elevador, fui de escada mesmo. São dois para atender um prédio inteiro, mas quando um inventa de quebrar, é, no mínimo, dez minutos de espera. Ainda tenho a sorte de ter que descer apenas um andar para chegar ao térreo. A história que me disponho a escrever não é exatamente essa. Começa assim, de mansinho. Dou boa noite ao porteiro, como sempre, e ele, gentilmente, me oferece um bom feriado. Opa, feriado? Maravilha! Já saí contente em direção a minha casa. E, de tão feliz, resolvi pegar um táxi por motivos pessoais de segurança. Tanta felicidade poderia acabar se transformando numa lástima.

Tinha um ponto de taxistas logo em frente. Fui até um deles.

- Vamos pra Casa Amarela!

Eu disse isso numa empolgação tão grande, que o taxista se mostrou super disposto para me levar ao destino.

- “Até que o trânsito tá tranquilo por aqui” – eu falei.
- “Tá senhora. Com esse feriado, muita gente já viajou. Daqui a pouco aporta um navio cheio de gringo no Porto do Recife.”
- “Ah, é? Que navio?”
- “O Pacific” - disse ele, cheio de orgulho.

O taxista já era de idade, magro, baixo, quase perdendo os cabelos, e ainda lhe faltava um dente na acarda dentária inferior.

- “Eu soube que já foram vendidos quase todos os pacotes turísticos para cá. Final de ano vai bombar de gente. Os hotéis já estão todos lotados para os festejos de fim de ano.”

Apesar de, assim como ele, estar informada a respeito do boom turístico da nossa cidade, fiquei feliz por ter escutado isso dele. Não por achar que taxistas são alienados, mas, naquele momento, senti uma confirmação de que meu trabalho, e dos meus colegas, estava atingindo o seu objetivo. A população está sentido a efervescência do turismo, deixando as críticas de lado. Então, continuei:

- “Isso vai ser muito bom pro senhor, né?”
- “Para mim e para você também.”
- “É” – falei, tentando buscar a resposta.
- “A senhora faz o que?” – continuou ele.
- “Eu? Sou jornalista.”
- “Meu deus, será a futura Fátima Bernardes? Tenho muito orgulho de estar transportando a senhora neste momento.”

An? Fátima Bernardes? Não!, gritei silenciosamente. Eu não sou ninguém, meu senhor. E nem sei se pretendo ser. Dei aquela resposta que todo mundo dá, acompanhada de sorrisinhos:

- “Deus te ouça. Chego nem perto.”

E ele, claro, também deu uma resposta costumeira:

- “Quem sabe? Você ainda tem muita estrada pela frente. Vocês mulheres são muito fortes. Sem vocês, nós homens não viveríamos. Sabe aquela música que diz, por trás de um homem tem sempre uma grande mulher? Isso é a mais pura verdade.”

Eu apenas consenti, olhando para frente e admirada com o trânsito que acabara de presenciar nas imediações da Abdias de Carvalho. Mas, percebi que na conversa ele partiu de um extremo a outro. O que tem a ver o fato de eu ser jornalista e a fama das mulheres serem fortes? O pior que ele estava certo. E o taxista continuou:

- “Eu já namorei uma menina que fazia medicina. E eu vivia lá no centro de saúde da Universidade Federal de Pernambuco. Uma vez assisti a uma aula. Tinham dois corpos abertos, um de um homem e outro de uma mulher. Mas, olhe, a senhora precisava ver como eu e você somos diferentes por dentro.”
- “É né, só o fato de termos útero e ovário” - falei
- “Pois é. Nós temos três camadas a mais de gordura.”

Nem contestei, até porque eu odiava biologia na época colegial. Sei de merda nenhuma.

- “Olhe, moça, vou dizer uma coisa. A gente pode ter toda a massa muscular, ser forte pra carregar botijão de gás, mas o homem morre cedo. Por isso que tem tanta viúva véia por aí.”

Soltei um sorriso acanhado de lado. Ele notou e também achou graça, perguntando meu nome em seguida. Depois, continuou indagando sobre o que eu fazia. Eu resumi um pouco.

- “Ah, você já cobriu policia?”
- “Já sim, mas foi por pouco tempo” – respondi
- “Poxa, não disse que é orgulho pra mim te levar no meu carro.”

Nesse momento, me senti a própria Gloria Maria. Ou Fátima Bernardes, como ele tinha dito? Continuei:

- “Fazer matéria policial é barra. Vi cada coisa horrível em um curto espaço de tempo.”
“É, né? Imagino. E como a senhora agüentava ver tanto sangue?”
- “No começo é foda, mas depois você se acostuma. Eu sentia muito quando era gente inocente que morria atropelado ou era assassinado por motivo fútil. Uma vez tive que engolir o choro com um jovenzinho que morreu indo à escola.”
- “Ow, rapaz. Teve uma vez que eu vi algo parecido na rua em que eu morava. Um menininho, amigo da minha filha. Ele era novo, vivia na rua. Uma coisa que eu não deixava era minha filha solta na rua. Esse menino um belo dia inventou de mexer num pneu de um caminhão da Coca-Cola que tinha parado para abastecer um mercado. Sendo que o motorista não viu e passou em cima da cabeça do menino.”

Isso não é história para se contar em plena sexta-feira, véspera de feriado. Fiquei angustiada. Mas, escutei atentamente as histórias que Saulo, o taxista, tinha a me dizer. A partir daí começava uma série de matérias, digamos, tipo Cardinot ou Sem meias palavras...

- “Já vi muita coisa. Fui caminhoneiro. Vi companheiro meu arder em chamas e eu sem poder fazer nada, a não ser continuar minha jornada.”
- “Putz" – foi a única coisa que consegui expressar.
- “Tive dezessete motos. Vinte amigos meus já foram enterrados. Teve um que bateu com a moto na minha frente. Foi em cheio no muro. Me mijei todinho nas calças. Fui correndo avisar aos pais dele. Quando cheguei, pareceu que todo mundo já tinha notado que algo havia acontecido. Ai eu falei: ‘o filho de vocês acabou de morrer’.
- “O senhor falou desse jeito sem nem ter ido olhar?”
- “A senhora precisava ver. Eu nem pensei em parar. Quando eu voltei ao local, tinha massa encefálica até na parede.”
- “Minha nossa...você tem espírito de jornalista policial.”

Saulo deu gargalhadas, sem entender muito o sentido que eu dei a suas falas. Então, ele continuou a falar de outras tragédias na sua vida. Chegou a dizer que há duas semanas foi até a casa de um amigo que há muito tempo não via.

- “Cheguei, bati palmas diversas vezes. Gritei por ele e nada. Queria conversar, contar um pouco como estava a minha vida e saber da dele também. Foi quando, então, o vizinho, que eu também conhecia, apareceu no portão e disse: ‘Tas procurando Marcinho?’. Tô, eu disse. ‘Tas sabendo não?’ O que houve? ‘Marcinho morreu em março desse ano’.
- “Ai” – disse eu, colocando a mão na cabeça.
- “Sabe como ele morreu? Ele tava voltando de uma viagem a trabalho, pela estrada. Aí, uma das rodas se soltou e ele perdeu o controle da direção, caindo logo em seguida numa ribanceira. Havia quatro pessoas no carro, só ele morreu.”
- “Quando chega a hora, é pra ser.”

Que comentário medíocre o meu, diante de um homem que se mostrava tão sábio.

- “É verdade. Feito uma amiga minha, a Aninha. Tava grávida de quatro meses a bichinha. Vinha dirigindo uma moto pela Boa Vista e bate de frente com um ônibus, que jogou ela longe. Ainda bem que ela não sofreu, morreu na hora.” – completou ele.

Eu, novamente, elevei as sobrancelhas, com um ar meio assustado, e consenti. Saulo foi até a minha casa contando tudo, detalhe por detalhe. E eu, por diversos momentos, ia escrevendo matérias com os meus pensamentos, apesar de muito cansada. Até que poucos minutos depois...

- “Pronto, senhora, está entregue. Estou agradecido por ter tido você como minha passageira, uma moça que gosta de conversar e, principalmente, sabe escutar.”
- “Ô, Seu Saulo, não precisa tanto. Adorei suas histórias. Boa noite.”
- “Boa noite.”

Em casa, papel e caneta a postos.

quarta-feira, 28 de outubro de 2009

Sinceridade

Sincero é aquele capaz de machucar a própria alma
Não falta uma palavra sequer no discurso
Tudo flui.
Não há perguntas ou dúvidas no ar
Não há reticências
Só pontos finais
Se contestar, perde-se o brilho
Perde-se a sinceridade

terça-feira, 27 de outubro de 2009

Recanto

Voz de melodia envolvente
Aguça a audição
Desperta sensações
Até o tempo se poupa por instantes
A sonoridade tranqüiliza a alma
Transcende aos desejos mais proibidos
Os olhos se fecham para o sentido se fazer existir
Na mente, a realidade vai sendo transportada
Desfaz o medo e consegue chegar ao puro sentimento
Que só quer ficar calado em nosso recanto

segunda-feira, 26 de outubro de 2009

Não há decepção maior de um ser humano do que a covardia alheia. Apesar de ser uma única palavra, ela abrange vários significados. Covardia é sinônimo de fraqueza, de ausência de amor próprio, de indelicadeza. Uma pessoa covarde é incapaz de ter qualquer sentimento, de demonstrar amor... tudo isso são privilégios dos corajosos. É um medo consentido de alguém desprovido de força. É uma pessoa cruel, fria, que não consegue viver em harmonia consigo mesma, que vive traindo-se e traindo as pessoas que o cerca. Falta de caráter é o primeiro sinal, onde se peca pelo silêncio, ao invés de manifestar-se. O covarde se esconde atrás da verdade que não consegue enxergar. A covardia é cega. Quem é covarde não é digno, sequer, de felicidade.

sábado, 17 de outubro de 2009

O dia em que Luís Hernandes resolveu mudar

Fim de tarde. Lá, no mesmo lugar, estava Luís Hernandes à espera do coletivo para ir ao curso. A rotina cansada era a mesma há três anos. Cruzava sempre com as mesmas pessoas na parada de ônibus, pegava o transporte com o mesmo motorista, o trajeto não mudava nunca, as aulas pareciam eternas. Até a namorada estava lhe causando certo repúdio. Brigas se tornaram freqüentes, desde que ele voltou de férias do Maranhão. E a conta de telefone passou a vir exorbitante...

Naquele dia, Luís Hernandes saiu de casa com gosto de gás. Decidido a tornar sua vida diferente. Mudar era a palavra-chave. As primeiras alterações começaram nas peças de roupas. Nada que ele passou a usar era costumeiro. Vestiu-se com uma camisa mais arrojada, um tênis All Star e uma bermuda bem transada (imaginem como quiser). Aquilo não era a cara dele, mas o sentimento de transformação falava mais alto. Bem mais alto.

A pasta que costumava carregar foi trocada por uma bolsa Adidas, dessas à tiracolo. O cabelo ganhou um topete simpático e gel para modelar os fios loiros das luzes que fez. Perfume no cangote e nos pulsos. Pronto. Pelo menos nas vestimentas, Luís aparentava ser outra pessoa.

Ao chegar na parada, a menina que sempre virara a cara para ele respirou fundo, sentindo o cheiro delicioso do perfume do novo rapaz. A jovem tinha os cabelos compridos, corpo de dar inveja a qualquer mulher e olhos cor de mel. De fato, Luís era caidinho por ela, mas dar bola a essa altura do campeonato mudaria os planos. Saiu de fininho e foi para o outro lado. A menina, claro, achou logo que ele fosse veado.

Enfim, chegou o ônibus de Luís Hernandes. Ele entrou pisando firme, emitindo barulho na lataria do veículo. O motorista (de sempre) chega se assustou com a ousadia do garoto.

- “Bom dia”, disse o motorista
- “Ahê, motô”, respondeu Luís, sentando na última cadeira.

O jeitão esparramado era meio forçado. A encenação terminou com a famosa coçadinha no saco. O cobrador virou a cara, com ar de reprovação. Três minutos depois o celular tocou. Era a sua namorada perguntando porque ele ainda não havia dado sinal de vida.

- “Ah, não senti vontade de ligar e pronto”
- “Como assim não sentiu vontade? Você tá louco? Pirou?”
- “Acho que sim,” disse Luís, desligando o telefone na cara da doida.

Era possível sentir a respiração da menina, que bufava do outro lado da linha. Com raiva, ela ligou novamente. Luís Hernandes demorou um pouco a atender.

- “Como você desliga o telefone na minha cara? Você nunca foi assim, não estou te reconhecendo. É você mesmo quem está falando?”

Luís Hernandes nada fez, a não ser afastar o aparelho celular do ouvido, diante do “pití” da namorada. Ainda tentou ser generoso, afinal, ela não tinha culpa nenhuma de tudo aquilo.

- “Ok, a gente pode conversar na faculdade”
- “Tá, então eu vou pra lá”
- “Agora vou apresentar um trabalho. Eu te ligo”

Desligaram o telefone. Não conformada, a menina ligou novamente. Luís atendeu irritado.

- “Oi”
- “Você vai apresentar o trabalho agora? Porque, se for o caso, chego aí em cinco minutos”

(mulheres são sempre ansiosas demais)

- “Deixa de ansiedade, garota. Assim que eu terminar a apresentação, eu ligo, pronto!”
- “Tchau, beijo”

Ele fechou a tampa do flip balançando a cabeça. Queria ter paciência, coisa que sempre teve. Deitou a cabeça na janela, deu play novamente no MP3 e esperou chegar ao destino.

Quando desceu à faculdade, sentiu uma canseira. Foi até à porta do elevador, mas desistiu de subir e saiu andando sem destino. Resolveu nem esperar mais a namorada, que virou ex sem nenhum motivo aparente. Luís chegou num bar meia boca e pediu uma cerveja. Nunca tinha ingerido nenhuma bebida alcoólica, tanto que ensaiou uma cara horrorosa quando sentiu o gosto amargo. Bebeu uma, duas, três…cinco. Ficou completamente embriagado. Cambaleante, caminhou até o banheiro, onde passou meia hora. Acabou cochilando. Os funcionários do boteco tiveram que arrombar a porta para tirá-lo de lá. Um vexame para o menino com fama de inteligente, que, no momento, estava despido. As pessoas que se dispuseram a expulsá-lo resistiram ao fato de ter que vesti-lo, mas foram obrigados pelo patrão.

- “Coloquem a roupa desse moleque agora! Depois, tirem-no daqui!”
- “Ok, senhor (em coro), responderam os funcionários”

Luís Hernandes estava na calçada, todo entregue. Até que resolveu se levantar, esticou os braços e fez aquela velha pergunta:

- “Onde estou?”
- “Você está no inferno”, respondeu o diabinho que acabara de encostar em seu ombro esquerdo.
- “Quem é você? Você existe mesmo? Então, cadê o lado do bem?”
- “Eu não existo e não tem lado do bem. Você só tem feito merda, cara!”

O menino começou a achar que poderia ter passado dos limites. Deve ter provado outras coisas a mais além da cerveja. Ele não queria e nem podia voltar para casa naquele estado. Então, decidiu continuar sua peregrinação. Foi até o centro da cidade e entrou numa boate. O lugar era um pouco escuro, com algumas luzes negras clareando. Um som de Britney Spears vinha de longe. Cada vez que Luís se aproximava, a música se tornava mais alta. No salão, muitas pessoas dançavam loucamente. Homens, mulheres, homens em mulheres, mulheres em homens. Um clima bem fraterno e instigante. O som das eletrônicas ia entrando no corpo de Luís. Quando ele mesmo esperou, estava se mexendo, jogando os braços molengos para frente e a cabeça para um lado e para o outro. E essa performance foi se tornando mais intensa, mais dançante e mais empolgante.

As pessoas abriram uma enorme roda para deixar um ser esquisito se mexer. Ele fechava os olhos e sentia Spice Girls dentro de si, Madona e Lady Gaga. O remelexo jegue não importava. Luís estava feliz, libertado. Só isso bastava. A coisa era tão prazerosa que todo mundo da boate passou a dançar junto com ele.

Em um instante, Luís saiu da discoteca e foi até o banheiro. Ao olhar para o lado, com a vista um pouco embaçada, viu duas mulheres se beijando. Ele franziu a testa, na tentativa de enxergar alguma coisa. O cabelo, a pele clara, o sinal na metade do braço…

- “Olha, não é nada disso!” - falou uma delas.
- Moça, sente-se feliz assim? – indagou Luís.
- “Eu ia te dizer isso hoje, mas você não apareceu na faculdade.” – continuou a garota

Era a ex-namorada, que sempre pagou de puritana.

- “Olha, querida, eu não sei quem você é. Passa amanhã. Beijo, não me liga”, proclamou Luís, saindo logo em seguida.

A menina ficou com a cara mais azeda do mundo, sem entender a reação do ex-namorado. Luís nem tinha ligado mesmo. Saiu da boate e vagou pela calçada procurando o que fazer.

Ele, então, sentou-se no meio-fio. O diabinho apareceu de novo. E desta vez, ele estava maior. Não era mais aquela coisa vermelha do tamanho de um passarinho que, anteriormente, havia pousado em seu ombro. Estava do tamanho de uma criança de dois anos, agora. Ele vinha andando na direção de Luís, cantarolando e balançando sua cauda pontiaguda com a mão esquerda, como se fosse um passo de balé. Nosso herói, Luís Hernandes, tentou se levantar, mas a pequena figura vermelha saltou em seu colo.

- Quem é você, porra?
- Já lhe disse. Eu sou o demônio e vim realizar uma obra demoníaca – responde o diabinho.

Seu hálito era enxofre puro e fez Luís enjoar.

O dia em que Luís Hernandes resolveu mudar - Parte II

O suco azedo invadiu-lhe o corpo, percorrendo veias, entupindo vasos, fundindo-se ao seu sangue. Neste momento, todos os órgãos pararam. O diabinho, ao lado, sorria feliz. Gargalhadas estridentes e diabólicas. Luís, então, vomitou. Botou para fora todo o podre que guardava dentro de si. Até a própria alma foi embora com o jato mau cheiroso. O pequeno diabo encostou-se ao seu rosto.

- “É, meu caro...você mudou demais. Não era pra ser assim. Nem beber você sabia, caralho.”

- “Ah, não enche. Me ajuda aqui.”, disse Luís Hernandes tentando tirar a cara do vômito.

- “Vai, levanta”, falou o diabo, puxando-o pelo braço.

- “Eu não consigo. É como se eu estivesse sem nada dentro de mim.”
- “Assim fica difícil, porra. Levanta, diabo!”
- “Hey, o diabo aqui é você. Não confunda as coisas.”

A cada segundo, Luís Hernandes ia ficando mais amolecido. Sua alma começou a largar do corpo, como se fosse uma regressão. Até o diabo teve medo. Enfim, saiu Luizinho da boca de Luís. Ele era do tamanho do diabinho, só um pouco mais magro. E, claro, a coisa vermelha estava feliz com o novo companheiro.

- “Você tá é bonitão, heim?”, comentou o diabo.
- “Que porra é essa que eu sou? Sou o anjo, é isso?”

O diabo deu uma risada incontrolável.

- “Anjo é a última coisa que você poderia ser.”

- “Num vem não que tu és muito pior do que eu.”
- “Eu sei disso, por isso que eu sou diabo!”, completou, elevando os braços para assustar Luís.

- “Sai de perto de mim, porra.”
- “Veja o lado bom. Agora, podemos ser brothers, cara!”
- “Que mané brother, tá louco? Estou assim, mas ainda não pirei completamente.”
- “Embora, vamos arrumar o que fazer!”, gritou o diabo, que já estava quase no fim da rua.

Luizinho Hernandes andou a passos lentos, querendo resistir àquela loucura. Perguntava-se a todo instante o que estava fazendo ali, com aquele tamanho, aquela transparência e com aquela criatura de rabo vermelho. - “E se for um sonho, este é o momento em que minha alma vaga pela madrugada?”, indagou-se.

Já eram duas horas da madrugada. A rua estava deserta. Luizinho Hernandes e seu diabo amigo andavam sem rumo.

O dia em que Luís Hernandes resolveu mudar - Parte III (final)

Os dois pararam em frente a um bar. Um lugar sujo e feio, com cadeiras e mesas velhas. Um homem gordo cochilava no balcão.

- "Vamos", disse o diabo.

Entraram e sentaram em uma mesa. O homem gordo acordou com o som das cadeiras sendo movidas e veio até eles. Com um pano molhado, enxugou a mesa e perguntou o que iam querer.

- "Cerveja", respondeu o diabo.
- "Não quero beber", gritou Luís Hernandes.
- "Mas vai. Fique aí que eu vou ao banheiro."

O gordo trouxe a cerveja e serviu dois copos. Luís bebeu, mesmo sem vontade. O diabo voltou e sentou-se ao seu lado.

- "Você cresceu mais ou é impressão minha?", perguntou Luís.

A figura vermelha, agora, tinha pouco mais de um metro de altura.

- "Sim. Não é legal?"
- "Não sei. Pra mim não tem importância."
- "Mas devia ter. Eu, por exemplo, me importo com o fato de você estar encolhendo."
- "Encolhendo?"

Assustado, Luís Hernandes levantou-se. Sua bermuda caiu até o chão e ele por pouco não tropeçou enroscado com ela em suas pernas.

- "Bonita cueca", disse o demônio, após tomar um gole de cerveja.

Luís Hernandes sentou-se de novo, constrangido. O gordo, no balcão, olhava para ele meio cismado com seu repentino strip-tease de Luís. Então, notou que sua camisa também estava folgada e seus pés balançavam dentro dos tênis All Star.

- "Quero ir pra casa, falou. Seu tom de voz era como o de um pedido. Como um garoto se sentindo desconfortável em um lugar estranho."
- "Não. Você não quer. Não tem nada lá."

Luís Hernandes abaixou a cabeça e fez um beiço de quem ia chorar. O diabo lhe deu uma tapa no rosto. Luís o encarou, constrangido e, agora, curioso.

- "Desde quando você usa gel, no cabelo?", perguntou Luís.

O diabo tinha agora um topete pintado de loiro. E estava maior, muito maior. Luís achou que estava bêbado ao extremo, mas depois percebeu. Realmente o diabo tinha crescido mais. Só que Luís havia encolhido significativamente. Ele estava agora envolto em suas roupas e sua camisa parecia mais um lençol.

- "Eu encolhi", disse ele, gaguejando. – "Você cresceu."
- "Venha", falou o diabo, lhe estendendo a mão.

Luís Hernandes subiu em sua mão e o diabo o levou até perto do seu rosto.

- "Chegou a hora de você fazer a coisa certa.", sentenciou o diabo, e em seguida arreganhou a boca.

Luís Hernandes, então, saltou para dentro da escuridão.

O diabo levantou-se, vestiu as roupas de Luís, pagou a cerveja e saiu do bar. Do outro lado da rua, havia alguns carros com os sons ligados e umas pessoas bebendo no local. Em uma das rodas de amigos, estava a menina que Luís Hernandes sempre via na parada de ônibus. Ela encarou abriu um farto sorriso quando viu o diabo e caminhou até ele.

- "Oi. Eu não te conheço?", perguntou ela.
- "Prazer em conhecê-la. Espero que adivinhe meu nome", respondeu ele, com um sorriso no rosto.


p.s: Conto baseado numa criatura grotesca que se sentou ao meu lado no ônibus.

Créditos:

Andreane Carvalho


Colaboração: Geraldo de Fraga (jornalista e escritor do livro História que nos Sangram – a venda nas melhores livrarias!).

terça-feira, 6 de outubro de 2009

Instante

Para brincar com o medo é preciso ser conhecedor
Brincar de vencer as amarguras e a dor
Nem tudo o que fala é permanente
Traiçoeiro, resolve logo cortar o mal pela raiz
Diz-me como faz para ser feliz?

A possibilidade apossa a posse
Mas, a brincadeira acabou
Pode começar a cessar
E não cesse sem antes tentar

Ri para descontrair
Ir para desiludir
Vir para não haver saudade
Deixa isso para daqui a dez anos



Às 21h01, passando pensamentos supérfluos para o papel.