sábado, 17 de outubro de 2009

O dia em que Luís Hernandes resolveu mudar

Fim de tarde. Lá, no mesmo lugar, estava Luís Hernandes à espera do coletivo para ir ao curso. A rotina cansada era a mesma há três anos. Cruzava sempre com as mesmas pessoas na parada de ônibus, pegava o transporte com o mesmo motorista, o trajeto não mudava nunca, as aulas pareciam eternas. Até a namorada estava lhe causando certo repúdio. Brigas se tornaram freqüentes, desde que ele voltou de férias do Maranhão. E a conta de telefone passou a vir exorbitante...

Naquele dia, Luís Hernandes saiu de casa com gosto de gás. Decidido a tornar sua vida diferente. Mudar era a palavra-chave. As primeiras alterações começaram nas peças de roupas. Nada que ele passou a usar era costumeiro. Vestiu-se com uma camisa mais arrojada, um tênis All Star e uma bermuda bem transada (imaginem como quiser). Aquilo não era a cara dele, mas o sentimento de transformação falava mais alto. Bem mais alto.

A pasta que costumava carregar foi trocada por uma bolsa Adidas, dessas à tiracolo. O cabelo ganhou um topete simpático e gel para modelar os fios loiros das luzes que fez. Perfume no cangote e nos pulsos. Pronto. Pelo menos nas vestimentas, Luís aparentava ser outra pessoa.

Ao chegar na parada, a menina que sempre virara a cara para ele respirou fundo, sentindo o cheiro delicioso do perfume do novo rapaz. A jovem tinha os cabelos compridos, corpo de dar inveja a qualquer mulher e olhos cor de mel. De fato, Luís era caidinho por ela, mas dar bola a essa altura do campeonato mudaria os planos. Saiu de fininho e foi para o outro lado. A menina, claro, achou logo que ele fosse veado.

Enfim, chegou o ônibus de Luís Hernandes. Ele entrou pisando firme, emitindo barulho na lataria do veículo. O motorista (de sempre) chega se assustou com a ousadia do garoto.

- “Bom dia”, disse o motorista
- “Ahê, motô”, respondeu Luís, sentando na última cadeira.

O jeitão esparramado era meio forçado. A encenação terminou com a famosa coçadinha no saco. O cobrador virou a cara, com ar de reprovação. Três minutos depois o celular tocou. Era a sua namorada perguntando porque ele ainda não havia dado sinal de vida.

- “Ah, não senti vontade de ligar e pronto”
- “Como assim não sentiu vontade? Você tá louco? Pirou?”
- “Acho que sim,” disse Luís, desligando o telefone na cara da doida.

Era possível sentir a respiração da menina, que bufava do outro lado da linha. Com raiva, ela ligou novamente. Luís Hernandes demorou um pouco a atender.

- “Como você desliga o telefone na minha cara? Você nunca foi assim, não estou te reconhecendo. É você mesmo quem está falando?”

Luís Hernandes nada fez, a não ser afastar o aparelho celular do ouvido, diante do “pití” da namorada. Ainda tentou ser generoso, afinal, ela não tinha culpa nenhuma de tudo aquilo.

- “Ok, a gente pode conversar na faculdade”
- “Tá, então eu vou pra lá”
- “Agora vou apresentar um trabalho. Eu te ligo”

Desligaram o telefone. Não conformada, a menina ligou novamente. Luís atendeu irritado.

- “Oi”
- “Você vai apresentar o trabalho agora? Porque, se for o caso, chego aí em cinco minutos”

(mulheres são sempre ansiosas demais)

- “Deixa de ansiedade, garota. Assim que eu terminar a apresentação, eu ligo, pronto!”
- “Tchau, beijo”

Ele fechou a tampa do flip balançando a cabeça. Queria ter paciência, coisa que sempre teve. Deitou a cabeça na janela, deu play novamente no MP3 e esperou chegar ao destino.

Quando desceu à faculdade, sentiu uma canseira. Foi até à porta do elevador, mas desistiu de subir e saiu andando sem destino. Resolveu nem esperar mais a namorada, que virou ex sem nenhum motivo aparente. Luís chegou num bar meia boca e pediu uma cerveja. Nunca tinha ingerido nenhuma bebida alcoólica, tanto que ensaiou uma cara horrorosa quando sentiu o gosto amargo. Bebeu uma, duas, três…cinco. Ficou completamente embriagado. Cambaleante, caminhou até o banheiro, onde passou meia hora. Acabou cochilando. Os funcionários do boteco tiveram que arrombar a porta para tirá-lo de lá. Um vexame para o menino com fama de inteligente, que, no momento, estava despido. As pessoas que se dispuseram a expulsá-lo resistiram ao fato de ter que vesti-lo, mas foram obrigados pelo patrão.

- “Coloquem a roupa desse moleque agora! Depois, tirem-no daqui!”
- “Ok, senhor (em coro), responderam os funcionários”

Luís Hernandes estava na calçada, todo entregue. Até que resolveu se levantar, esticou os braços e fez aquela velha pergunta:

- “Onde estou?”
- “Você está no inferno”, respondeu o diabinho que acabara de encostar em seu ombro esquerdo.
- “Quem é você? Você existe mesmo? Então, cadê o lado do bem?”
- “Eu não existo e não tem lado do bem. Você só tem feito merda, cara!”

O menino começou a achar que poderia ter passado dos limites. Deve ter provado outras coisas a mais além da cerveja. Ele não queria e nem podia voltar para casa naquele estado. Então, decidiu continuar sua peregrinação. Foi até o centro da cidade e entrou numa boate. O lugar era um pouco escuro, com algumas luzes negras clareando. Um som de Britney Spears vinha de longe. Cada vez que Luís se aproximava, a música se tornava mais alta. No salão, muitas pessoas dançavam loucamente. Homens, mulheres, homens em mulheres, mulheres em homens. Um clima bem fraterno e instigante. O som das eletrônicas ia entrando no corpo de Luís. Quando ele mesmo esperou, estava se mexendo, jogando os braços molengos para frente e a cabeça para um lado e para o outro. E essa performance foi se tornando mais intensa, mais dançante e mais empolgante.

As pessoas abriram uma enorme roda para deixar um ser esquisito se mexer. Ele fechava os olhos e sentia Spice Girls dentro de si, Madona e Lady Gaga. O remelexo jegue não importava. Luís estava feliz, libertado. Só isso bastava. A coisa era tão prazerosa que todo mundo da boate passou a dançar junto com ele.

Em um instante, Luís saiu da discoteca e foi até o banheiro. Ao olhar para o lado, com a vista um pouco embaçada, viu duas mulheres se beijando. Ele franziu a testa, na tentativa de enxergar alguma coisa. O cabelo, a pele clara, o sinal na metade do braço…

- “Olha, não é nada disso!” - falou uma delas.
- Moça, sente-se feliz assim? – indagou Luís.
- “Eu ia te dizer isso hoje, mas você não apareceu na faculdade.” – continuou a garota

Era a ex-namorada, que sempre pagou de puritana.

- “Olha, querida, eu não sei quem você é. Passa amanhã. Beijo, não me liga”, proclamou Luís, saindo logo em seguida.

A menina ficou com a cara mais azeda do mundo, sem entender a reação do ex-namorado. Luís nem tinha ligado mesmo. Saiu da boate e vagou pela calçada procurando o que fazer.

Ele, então, sentou-se no meio-fio. O diabinho apareceu de novo. E desta vez, ele estava maior. Não era mais aquela coisa vermelha do tamanho de um passarinho que, anteriormente, havia pousado em seu ombro. Estava do tamanho de uma criança de dois anos, agora. Ele vinha andando na direção de Luís, cantarolando e balançando sua cauda pontiaguda com a mão esquerda, como se fosse um passo de balé. Nosso herói, Luís Hernandes, tentou se levantar, mas a pequena figura vermelha saltou em seu colo.

- Quem é você, porra?
- Já lhe disse. Eu sou o demônio e vim realizar uma obra demoníaca – responde o diabinho.

Seu hálito era enxofre puro e fez Luís enjoar.

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